Meses
atrás, verificando os tweets do dia, me deparei com um texto de um brasileiro
morando na Holanda, que fez uma comparação das diferenças dos valores sociais
entre as duas nações. Achei o texto excelente, embora eu tenha demorado um
pouco, finalmente publico aqui.
O
texto é de 2009, e é extremamente atual, haja vista as manifestações sociais que
tivemos no país no último mês de Junho, embora pelo visto, o gigante já tenha
voltado a descansar.
O
texto é grande, mas vale a pena. Uma boa leitura à todos.
Por Daniduc - Daniel Duclos
UPDATE:
Muita gente tem lido este post como uma idealização da Holanda como um lugar
paradisíaco. Nada mais longe da verdade. A Holanda não é nenhum paraíso e tem
diversos problemas, muitos dos quais eu sinto na pele diariamente. O que
pretendo fazer aqui é dizer duas coisas: a origem da violência no Brasil é a
desigualdade e fica infeliz quando ela diminui, porque dela se beneficia e não
enxerga a ligação desigualdade-violência. Por fim: esse post não é sobre a
Holanda. A Holanda estar aqui é casual. Esse post é sobre o Brasil, minha
pátria mãe.
A sociedade holandesa tem dois pilares muito claros: liberdade de
expressão e igualdade. Claro, quando a teoria entra em prática, vários
problemas acontecem, e há censura, e há desigualdade, em alguma medida, mas
esses ideais servem como norte na bússola social holandesa.
Um porteiro aqui na Holanda não se acha inferior a um gerente. Um
instalador de cortinas tem tanto valor quanto um professor doutor. Todos
trabalham, levam suas vidas, e uma profissão é tão digna quanto a outra. Fora
do expediente, nada impede de sentarem-se todos no mesmo bar e tomarem suas
Heinekens juntos. Ninguém olha pra baixo e ninguém olha pra cima. A profissão
não define o valor da pessoa – trabalho honesto e duro é trabalho honesto e
duro, seja cavando fossas na rua, seja digitando numa planilha em um escritório
com ar condicionado. Um precisa do outro e todos dependem de todos. Claro que
profissões mais especializadas pagam mais. A questão não é essa. A questão é
“você ganhar mais porque tem uma profissão especializada não te torna melhor
que ninguém”.
Profissões especializadas pagam mais, mas não muito mais. Igualdade
social significa menos distância social: todos se encontram no meio. Não há
muito baixo, mas também não há muito alto. Um lixeiro não ganha muito menos que
um analista de sistemas. O salário mínimo é de de 1300 euros/mês. Um bom
salário de profissão especializada, é uns 3500, 4000 euros/mês. E ganhar mais
do que alguém não torna o alguém teu subalterno: o porteiro não toma ordens de
você só porque você é gerente de RH. Aliás, ordens são muito mal vistas. Chegar
dando ordens abreviará seu comando. Todos ali estão em um time, do qual você
faz parte tanto quanto os outros (mesmo que seu trabalho dentro do time seja
tomar decisões).
Esses conceitos são basicamente inversos aos conceitos da sociedade
brasileira, fundada na profunda desigualdade. Entre brasileiros que aqui vêm
para trabalhar e morar é comum – há exceções – estranharem serem olhados no
nível dos olhos por todos – chefe não te olha de cima, o garçom não te olha de
baixo. Quando dão ordens ou ignoram socialmente quem tem profissão menos
especializadas do que a sua, ficam confusos ao encontrar de volta hostilidade
em vez de subserviência. Ficam ainda mais confusos quando o chefe não dá ordens
– o que fazer agora?
Os salários pagos para uma profissão especializada no Brasil conseguem
tranquilamente contratar ao menos uma faxineira diarista, quando não uma
empregada full time. Os salários pagos à mesma aqui não são suficientes para
esse luxo, e é preciso limpar o banheiro sem ajuda – e mesmo que pague (bem
mais que pagaria no Brasil) a um ajudante, ele não ficará o dia todo a te
seguir limpando cada poeirinha sua, servindo cafezinho. Eles vêm, dão uma
ajeitada e vão-se a cuidar de suas vidas fora do trabalho, tanto quanto você.
De repente, a ficha do que realmente significa igualdade cai: todos se
encontram no meio, e para quem estava no Brasil na parte de cima,
encontrar-se no meio quer dizer descer de um pedestal que julgavam direito
inquestionável (seja porque “estudaram mais” ou “meu pai trabalhou duro e saiu
do nada” ou qualquer outra justificativa pra desigualdade).
Porém, a desigualdade social holandesa tem um outro efeito que é muito
atraente para quem vem da sociedade profundamente desigual do Brasil: a
relativa segurança. É inquestionável que a sociedade holandesa é menos violenta
que a brasileira. Claro que aqui há violência – pessoas são assassinadas, há
roubos. Estou fazendo uma comparação, e menos violenta não quer dizer “não
violenta”.
O curioso é que aqueles brasileiros que queixam-se amargamente de
limpar o próprio banheiro, elogiam incansavelmente a possibilidade de andar à
noite sem medo pelas ruas, sem enxergar a relação entre as duas coisas.
Violência social não é fruto da pobreza.
Violência social é fruto da desigualdade social. A sociedade holandesa é
relativamente pacífica não por que é rica, não porque é “primeiro mundo”, não
porque os holandeses tenham alguma superioridade moral, cultural ou genética
sobre os brasileiros, mas porque a sociedade deles tem pouca desigualdade. Há
uma relação direta entre a classe média
holandesa limpar o seu próprio banheiros e poder abrir um Mac Book de 1400 euros
no ônibus sem medo.
Eu, pessoalmente, acho excelente os dois efeitos. Primeiro porque
acredito firmemente que a profissão de alguém não tem qualquer relação com o
valor pessoal. O fato de ter “estudado mais”, ter doutorado, ou gerenciar uma
equipe não te torna pessoalmente melhor que ninguém, sinto muito. Não enxergo a
superioridade moral de um trabalho honesto sobre outro, não importa qual seja.
Por trabalho honesto não quero dizer “dentro da lei” – não considero honesto
matar, roubar, espalhar veneno, explorar ingenuidade alheia, espalhar ódio e
mentira, não me importa se seja legalizado ou não. O quanto você estudou pode
te dar direito a um salário maior – mas não te torna superior a quem não tenha
estudado (por opção, ou falta dela). Quem seu pai é ou foi não quer dizer nada
sobre quem você é. E nada, meu amigo, nada te dá o direito de ser um cuzão. Um
doutor que é arrogante e desonesto tem menos valor do que qualquer garçom que trata
direito as pessoas e não trapaceia ninguém. Profissão não tem relação com valor
pessoal.
Não gosto mais de qualquer um de limpar banheiro. Ninguém gosta – nem as
faxineiras no Brasil gostam, obviamente. Também não gosto de ir ao médico fazer
exames. Mas é parte da vida, e um preço que pago pela saúde. Limpar o banheiro
é um preço a pagar pela saúde social. E um preço que acho bastante barato, na
verdade.